A mulher acordou de madrugada. Estava sozinha, o marido havia viajado a trabalho e como a filha, segundo acreditava, estava dormindo angelicalmente, estava só. Colocou seu roupão e dirigiu-se a cozinha, encheu um copo com água gelada, caminhou até a sala, abriu parte da janela e liberou a espiã que morava dentro em si. Seus olhos giraram, até encontrar do outro lado da rua, em frente a sua casa, um carro estacionado com um casal sedento de beijos... Ela olhou,espremeu os olhos, mas não conseguiu identificar quem eram. Permaneceu por mais algumas horas fixa, como traduzia seus pensamentos, nos desavergonhados, e não conseguindo, por mais que tentasse descobrir quem eram, fechou a janela e voltou ao quarto. Pela manhã, tomando café em companhia da filha, comentou o visto:
- Sabes que ontem à noite, sem querer, abri a janela da sala e vi um carro estacionado ai, na frente de casa. Não imaginas as cenas que vi. Coisas de uma típica vagabundinha. Uma vergonha para uma mãe. Um agarra sem fim! Daqui a pouco, aparece grávida, os pais se apavoram perguntando onde erraram. Ora, onde erraram? Simples, né, deixando que a filha saia e volte à hora que quer, e ainda por cima fique dentro de um carro altas horas da madrugada como uma vadiazinha qualquer. Um horror...
A filha deu uma ruborizada, soltou um “é!” com um sorriso amarelado no rosto e saiu.
Naquela mesma noite a cena repetiu-se, Porém desta vez ela sem mostrar o rosto, gritou:
- Vai para casa, sua vadia! Isso é hora de fazer cena na frente da casa dos outros?!
Acabou de falar e o carro saiu.
Pela manhã, caminhando para o mercado encontrou a vizinha e foi logo perguntando:
- Tu tens visto aquele carro que toda noite fica estacionado aqui na rua, com um casal de ordinários que ficam fazendo vagabundagens dentro? Queria descobrir quem é a vadia!
A vizinha apenas a olhou, deu um risinho, quase como quem pede desculpas, e meneou a cabeça como forma de censurar o fato (ou quem sabe a narradora?!) e seguiram.
A tarde ainda, cruzando com outra vizinha, teceu o mesmo comentário, sem receber absolutamente nada de questionamento por parte da ouvinte acerca do fato, Esta apenas limitou-se a encará-la com um sorriso abusado nos lábios (que na empolgação de narrar o fato não foi percebido), menear a cabeça e calar-se.
A mulher voltou a casa sua, preparou a janta enquanto arquitetava o desmascaramento da vadia, caso aparecesse por ali novamente; riu das palavras armazenadas para a noite e do espetáculo que faria. Depois fechou o riso pensando na dor que sentiria a mãe da vadia, caso fosse uma das vizinhas ou alguém da redondeza. Embora isso não a fizesse desistir, jantou em companhia da filha, assistiram a novela e ao final desta, a filha retirou-se para o quarto. A mulher caminhou até o seu, esticou-se na cama e dormiu algumas horas. Despertou pelas tantas da madrugada e rapidamente chegou à janela. Abriu-a e lá estava o carro com a “vadia” aos agarrões, sentada no colo do motorista. Ela não se conteve, abriu a porta sem fazer ruído e caminhando em direção ao carro, começou a sua cena planejada ao meio dia:
- Sua vagabunda! Vaca sem vergonha! Não tens outro lugar para fazer safadeza? Olha aqui sua puta sem vergonha, este bairro é um lugar de respeito. Famílias decentes moram aqui, se tu não tens quem te dê bons exemplos, sua vaca, vai fazer essas coisas na frente da tua casa.
Nisso a vizinhança toda já estava saindo do portão, olhando a mulher, de roupão vermelho, esbravejando na frente do carro, impedindo que saísse para que todos vissem a cara da vadia.
A mulher ainda ia continuar o show quando a “vadia” saiu, ainda abotoando a saia, de dentro do carro. Para sua surpresa e desespero, reconheceu ali, como à vadia que se dava ao desfrute noites seguidas dentro do carro, sua própria filha.
Ela olhou a sua volta, vendo a vizinhança inteira ali presenciando a deplorável cena, baixou a cabeça e a voz e sem ter o que fazer para remediar o feito e dito, retirou de si o roupão entregando-o a filha, dizendo com voz doce:
- Querida, eu não te falei para por uma blusa? As noites esfriam muito! Pega, veste este roupão, te despede do namorado e vamos entrar que já esta tarde. E passando pelo motorista, que a olhou incrédulo e assustado, não entendeu nada, disse:
-Boa noite, Luciano! Então esta marcado! Vou esperar tu e teus pais para o almoço de domingo.
Andou como se voasse pela rua sem olhar para lado algum, entrou em casa, bebeu um copo de água e jogou-se na cama.